O FUTURO DA IGREJA E A IGREJA DO FUTURO - por Marcos Inhauser




Duas grandes ameaças pesavam sobre a Igreja primitiva: o poder imperial que movia cruenta perseguição e o surgimento de líderes heréticos. A primeira ameaça, a “perseguição global” que a igreja sofria, tinha conotações políticas, porque o poder central que comandava as decisões e o pensamento de seus súditos, percebeu que sua aldeia global estava ameaçada por um grupo de fanáticos que se recusavam a dizer “César é Senhor.”

Infiltraram jornalistas com câmaras escondidas no meio deles e “descobriram” que os cristãos celebravam o ágape ou “festa do amor”, que se chamavam de irmãos e irmãs e que comiam do corpo e bebiam do sangue de Jesus Cristo.

Do alto de sua sabedoria filosófica de cunho pragmático e consumista, concluíram que os cristãos promoviam a decadência moral do povo, pois celebravam orgias sexuais em suas festas do amor, praticavam o incesto porque se chamavam de irmãos e irmãs nestes banquetes orgiásticos e praticavam a antropofagia porque comiam do corpo e bebiam do sangue de Jesus.

O império fez um movimento “Fantástico” para “alertar” a aldeia global sob seus pés imperiais, e escalou El Cid-Moreira para divulgar o perigo que esta nova seita representava para os projetos políticos do César romano que vivia no Jardim Botânico do Rio - perdão - de Roma.

Cabeças rolaram, gente inocente foi crucificada, comida pelos leões, queimadas vivas, serradas vivas. E tudo isto serviu como espetáculo, como Show no Fantástico Coliseu Romano.

Se esta primeira ameaça era externa e tinha claros contornos político-ideológicos, a segunda era interna e tinha elementos político-teológicos. A igreja tinha sido fundada pelos alunos do Seminário Teológico de Jesus. Eles tiveram um curso teológico e prático de três anos de duração, receberam a ordenação ministerial pela descida do Espírito Santo e, como em qualquer outro seminário que se preze, houve alguém que se extraviou e traiu a causa do evangelho. Zelosos que eram da sã doutrina procuravam transmitir as coisas com fidelidade, tal qual haviam aprendido do Divino Mestre. Eles eram os guardiões da doutrina pura. Mas, eis que de repente, surge, não se sabe bem onde, nem como, outro apóstolo, nascido fora de tempo, que dizia ter passado pelo Seminário de Jesus. Paulo era o seu nome. Ele ensinava a graça que liberta da escravidão da lei.

Os alunos do Seminário, por terem recebido aulas do próprio Mestre e por terem um background judeu, viram com restrição os ensinos deste também judeu, só que um judeu renegador das tradições mais altas da religiosidade judaico/cristã. A coisa esquentou a tal ponto que fizeram um concilio em Jerusalém para decidir se Paulo era ou não verdadeiro apóstolo. Depois de muita saliva, chegaram a um acordo salomônico: Paulo é apóstolo, prega a verdade, mas deve obedecer algumas coisas como não comer sangue, não ter relações sexuais ilícitas, etc. e tal.

Ocorre que Paulo não foi o único herege que surgiu. Começaram a aparecer aqui e ali profetas, profetisas, apóstolos, mestres, sábios, ex-qualquer coisa e todos se julgavam donos da verdade. A quase totalidade deles não se sabia em que Seminário tinha estudado, com quem havia aprendido, alguns tinham feito uns supletivos de Teologia em alguma biboca e outros “usavam só a Bíblia”.

Havia os que negavam partes da Bíblia, como era o caso de Marcião que desprezava o Antigo Testamento, havia os que enfatizavam os dons, como era o caso de Apolo que criou uma tremenda confusão em Corinto, havia os profetizadores, os que se perdiam em discussões genealógicas, outros que falavam mais de demônios que de anjos, outros que fabricam uma lista interminável de “pode” e “não pode”. Havia também os milagreiros, os mercadores da palavra, os que no dizer de Pedro, “faziam comércio dos crentes”, os que negavam a humanidade de Jesus e os que sustentavam o adocionismo. Era um supermercado de doutrinas, uma para cada gosto e para cada comichão de ouvidos.

É neste contexto que alguns dos escritores neo-testamentários escreveram suas epístolas, preocupados que estavam com o futuro da Igreja. É o caso de Judas que alertava a igreja quanto aos que se introduziram no nosso meio, que convertem em dissolução a graça de Deus... que contaminam a carne, rejeitam as autoridades, que são como manchas em vossas festas de amor, pastores que a si mesmos se apascentam. É o caso de I João alertando quanto aos que diziam que não mais pecavam.

É o caso de Pedro em suas duas epístolas. Pedro, um dos alunos de Jesus, preocupado com a desaparição precoce de seus colegas de turma, quase todos martirizados”. Estava também preocupado com a investida de verdadeiras fábricas de heresia, pessoas que surgiam de não sei onde, que não tinham estudado com ninguém, mestres de si mesmos. Diante do quadro que via, ele escreve “aos estrangeiros dispersos em várias partes do mundo aos que alcançaram fé”. Pedro estava preocupado com os fatos e dava às igrejas algumas orientações quanto ao seu futuro.

1. Democratizar os Ministros
Pedro escreve aos líderes das igrejas dizendo: “Aos presbíteros, que estão entre vós, admoesto eu, que também sou presbítero com eles, e testemunha das aflições de Cristo, e participante da glória que se há de revelar: apascentai o rebanho de Deus que está entre vós, tendo cuidado dele, não por força, mas voluntariamente; nem por torpe ganância, mas de ânimo pronto; nem como tendo domínio sobre a herança de Deus, mas servindo de exemplo ao rebanho.”

Pedro estava preocupado com o surgimento de uma liderança autoritária, despótica, que estava tratando o rebanho como propriedade privada, que estava se enriquecendo com o comércio da fé. A mesma preocupação encontramos em Paulo ao falar dos “mercadores da palavra” e em João ao condenar a liderança de Diótrefes, “que procura ter o primado na igreja, não recebendo a João e nem permitindo que os membros da igreja o recebessem”.

Há uma estreita relação entre heresia e ditadura eclesial. Os exemplos da história são muitos. As heresias nascem e prosperam sob a proteção e promoção de lideranças autocráticas. Aí estão os Jim Jones, os David Koresh, os Joseph Smith, entre os estrangeiros e Edir Macedo, Estevão Hernandes entre os nacionais.

A heresia prospera em terreno autoritário porque o autoritarismo no seio da igreja tem a capacidade de enfraquecer um dos elementos básicos do ser igreja: a comunidade hermenêutica.

Quando a igreja vive a democracia dos ministérios, quando a igreja aplica a teologia petrina de que somos “reino de sacerdotes” e, portanto, a realidade do sacerdócio universal de todos os crentes, a heresia não prospera porque não será o entendimento de um que se impõe, mas a interpretação consensual que o Espírito produz.

Não é coincidência que a Reforma do século XVI tenha sido um libelo contra o centralismo autoritário do bispo de Roma. Tampouco é coincidência que os reformadores democratizaram o acesso à Bíblia e ao ministério pela elaboração da doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes, baseados na afirmação de Pedro. E ironia do destino, foi o primeiro papa, segundo a versão católica, quem deu as bases para a descentralização de poder eclesiástico, coisa diametralmente oposta à figura do papa.

Assusta-nos olhar para o panorama eclesial brasileiro e descobrir quantos ditadores religiosos temos no nosso meio, quantos papas sentados nos tronos de uma presidência de Conselho, de presbitério ou Supremo Concílio. Há “donos da verdade” esparramando suas heresias com rótulos de “fundamentalismo”, “puritanismo”, “espiritualidade”, prosperidade, etc. Há líderes de igrejas que tem doutorado em infernizar a vida de pastores. São PhD em expulsões, não de demônios, mas de pastores.

Há pastores que mais se parecem a máquinas de caça-níqueis que guias do rebanho.

O futuro da igreja e a igreja do futuro não admite o autoritarismo. Isto é mais do que nunca verdade no contexto brasileiro. O saber teológico, antes restrito a uma elite privilegiada de estudantes dos seminários, acabou sendo democratizado. A multiplicação de editoras e de livros em português permitiu que os membros tivessem acesso a um saber que, por muito tempo, esteve restrito aos iniciados. A proliferação de Seminários, Institutos Bíblicos, Encontros, Workshops, talleres, etc. foram também instrumentos desta democratização do saber.

Hoje há muito mais gente capacitada nas igrejas, há mais professores, pregadores, administradores, conselheiros. O que era a tarefa de um, do profissional da religião, hoje, por vários métodos, alguns deles não tão pacíficos e harmônicos, passou a ser tarefa de uma equipe.

2. A Solidificação da Ética
Tanto em I Pedro como em II Pedro vamos encontrar várias referências ao aspecto ético e moral e a necessidade de serem observados e solidificados no seio das igrejas. Expressões como “sêde sóbrios”, “não vos conformeis com as concupiscências”, “sede santo porque eu sou santo”, “purificando as vossas almas pelo Espírito na obediência à verdade”, “deixando a malícia, o engano, a inveja, a murmuração”, “tendo o vosso viver honesto”, “honrai a todos”, são alguns dos exemplos desta exortação a um comportamento ético. Para Pedro há duas razões para este apelo à ética:

A primeira delas é para que, “naquilo em que falam mal de vós, como de malfeitores, glorifiquem a Deus no dia da visitação, pelas boas obras que em vós observam”.

A segunda é para que tivessem critérios para avaliar os falsos profetas. No entender de Pedro, assim como no de Judas, uma das formas de avaliar e julgar os falsos profetas é examinando se a conduta deles é ética. Na II Pedro capítulo 2 há toda uma lista de critérios ético-morais para avaliar a estas “fábricas de heresia”. Para Pedro eles “andam segundo a carne, em concupiscências e imundícia, desprezam as autoridades, atrevidos, obstinados, não receando difamar as dignidades, são como animais irracionais, têm os olhos cheios de adultério tendo o coração exercitado na avareza, filhos de maldição”.

Tenho estudado o perfil das igrejas e concluído que há uma tipologia que se pode usar com razoável sucesso. Para mim, as igrejas históricas brasileiras se caracterizavam por serem e pregarem a um comportamento ético. É verdade que ela teve problemas com alguns de seus pastores e membros, que houve escândalos aqui e ali, mas nada que chegasse às páginas policiais dos jornais, nem ao segmento próprio dos telejornais. A igreja histórica brasileira, por sua conduta ética, ao longo destes 150 anos de presença no Brasil, conquistou o respeito e admiração até mesmo dos católicos.

Por outro lado, o pentecostalismo se caracterizou por sua postura legalista. A ética foi rebaixada a uma quantidade infinita de regras e princípios, uma lista infindável de “pode” e “não-pode” que visava regular todos os aspectos da vida pessoal. A ética desceu do seu status de convicção pessoal para ser um instrumento de imposição doutrinal. No que pese este ultraje à ética, a igreja pentecostal brasileira também não se envolveu em grandes escândalos, nem ganhou as páginas policiais. Talvez o maior tropeço tenha sido a venda do voto para os cinco anos do Sarney em troca de concessão de rádios e TVs, coisa que para sermos sinceros, alguns “históricos” também tropeçaram.

No entanto, o neo-pentecostalismo tem se caracterizado por sua postura aética. Tendo por fundamentação filosófica o pragmatismo utilitarista, na sua versão empresarial de “gerência por resultados”, as igrejas neo-pentecostais abdicaram da ética em favor dos resultados. Numa versão moderna e religiosa do maquiavélico “os fins justificam os meios”, a igreja neo-pentecostal, ao abraçar a teologia da prosperidade, abdicou da ética. Já não são os valores que regem a vida, mas os resultados. Nesta tarefa aética, num mecanismo psicológico de fuga da responsabilidade diante de ações antiéticas, ao invés de confessarem o pecado, expulsam o demônio que os levou a tropeçar.

Esta demonologia vendida como “Guerra Espiritual” é o mecanismo ideológico e psicológico para uma religiosidade aética. Tudo é obra do demônio. Se nas igrejas históricas a salvação de Jesus Cristo era o meio de entrar no gozo do Senhor e nas igrejas pentecostais era o escapar do inferno, nas igrejas neo-pentecostais é o entrar na bonança material. Se nas igrejas históricas se dava testemunho das bênçãos recebidas e nas pentecostais das visões tidas, nas igrejas neo-pentecostais se testemunha das riquezas recebidas.

Neste contexto aético, não é de se admirar que a confissão de pecados perdeu seu espaço nos cultos evangélicos e na nova hinologia. A quase totalidade dos novos corinhos e hinos produzidos é de adoração e de guerra espiritual. Não conheço nenhum que trate da vida cristã, da confissão de pecados ou da renúncia ou consagração. A teologia da prosperidade não enfatiza a entrega; a dar, mas o exigir.

Não é à-toa que o papa deles se chame “Pedir Mais Cedo.”

3. Educação na Comunhão
Há uma tendência generalizada em nossas igrejas em acreditar que a comunhão entre os membros é obra do Espírito e que isto ocorre como que por passe de mágica. É verdade que a comunhão é obra do Espírito, mas também é verdade que há um processo educativo para viver-se em comunhão. Pessoas vindas de famílias desajustadas e disfuncionais enfrentam maiores dificuldades para viver em harmonia e em praticar a solidariedade. Isto se dá porque não aprenderam, no convívio com seus amados, as regras básicas do conviver, do estar em comunhão. A vida familiar é uma escola de comunhão e solidariedade. A disfuncionalidade dos sistemas familiares afeta a vida na comunidade religiosa.

Não é para menos que Pedro, ainda que refletindo uma cultura machista, estabeleça certos princípios para a comunhão familiar. As esposas, segundo Pedro, devem estar em harmonia com seus maridos através da submissão e os maridos, por sua parte devem fazê-lo através da coabitação com entendimento, dando honra às esposas (I Pe 3:1-7). O entendimento e a paz conjugais são elementos básicos para uma boa comunhão familiar e eclesial. A vida de uma igreja nunca será melhor que a vida das famílias que a compõem. A relação igreja e família está evidenciada em várias partes do Novo Testamento.

Marcos Inhauser, professor, pastor, teólogo e educador corporativo.


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